19 fevereiro 2008

ADOLESCÊNCIA COMO IDEAL CULTURAL

“Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo: temos todo o tempo do mundo. Todos os dias, antes de dormir, me esqueço e lembro como foi o dia. Sempre em frente, não temos tempo a perder…” (Trecho da música Tempo Perdido – Renato Russo)

A grande limitação da sociedade ocidental, que viu avanços inegáveis nas últimas décadas nas áreas da saúde, transporte, tecnologia etc, é deparar-se com uma condição incontornável: a morte.

É justamente nesta época em que se percebeu a frustração da finitude humana, em que as pessoas procuram prolongar sua vida, não conversam mais sobre a morte, retiram-na do cotidiano, e se recusam a aceitar o destino de todo vivente, é aí que ocorre a “invenção” da adolescência.


Até poucas décadas atrás, o ideal do adolescente era tomar parte do mundo dos adultos. A sociedade era tradicional, ou seja, os lugares e os papéis já estavam pré-estabelecidos e a vida, mesmo depois da morte do indivíduo, tinha continuidade na comunidade. Esse modelo tradicional e comunitário impunha forte controle sobre a pessoa, e os adultos eram os protagonistas da vida social. Ao adolescente restava conquistar a “maioridade” perante a sociedade.

Com a passagem do modelo tradicional para o contemporâneo, com a primazia do indivíduo sobre a sociedade, a morte torna-se por sua vez uma experiência pessoal, carente de significação subjetiva na existência de cada pessoa. É preciso, em outras palavras, buscar um sentido para a vida e para a morte, que já não está no âmbito comunitário, mas, mesmo que o indivíduo possua uma fé religiosa, reside na intimidade pessoal.

A única instituição tradicional comunitária que perdurou foi a família, que se une pelo laço de amor. A família contemporânea pede que a criança se submeta por amor, mas também a incentiva a se libertar da condição familiar e responder às expectativas paternas, realizando os sonhos do pais frustrados por sua mortalidade.

A infância surge não mais como fase de adultos em miniatura, mas como fase humana específica e especial, alimentando o desejo de realização dos adultos. Estes vêem nas crianças a possibilidade de realização que lhes foi negada pela concreteza da vida e pela sua finitude.
Para os adultos, a infância constitui consolo e esperança: ao olharem para as crianças, sentirão que sua obra inacabada terá com elas continuidade. Ao mesmo tempo sua eterna insatisfação e ambição se tornam suportáveis pois o fracasso alimenta a espera de que as crianças revezarão com eles. Além disso, elas proporcionam um prazer estético.

Por isso os adultos se “derramam” pelas crianças e lhes negam qualquer infelicidade, como se fosse possível garantir a realização de todos os desejos delas. A infância passa a ser tida como uma fase de felicidade, sem o compromisso, a responsabilidade adulta. As crianças são vestidas para comporem a imagem da segura felicidade, se tornando objeto de contemplação, remetendo sempre à infância como fase mítica da realização que nunca alcançaremos.

Com esse ideal, para além do prazer estético, a sociedade moderna força o prolongamento da infância e inventa a adolescência. Pois se a infância é um ideal de momento feliz, é um ideal comparativo, já que a maioria dos adultos não gostaria de voltar a ser criança.

Mais interessante do que de como os adultos olham a infância, é a forma como os adultos vêem os adolescentes. Estes representam um ideal identificatório: têm um corpo capaz de prazer, semelhante ao corpo adulto, com a vantagem da não necessidade de assumir responsabilidade, não ter de sustentar cônjuges e filhos, ter tempo disponível para festas, viagens…

Estabelece-se assim um paradoxo: os adolescentes querem fazer parte do mundo dos adultos e essa participação é negada, por isso formam grupos com que se identificam. Por outro lado os adultos desejam ser como os adolescentes e essa negação da participação é, na verdade, expressão de seu desejo de ver os adolescentes sempre rebeldes e irresponsáveis como gostariam de ser.

Há a tendência dos adolescentes a formar um grupo, rebelando-se contra o mundo adulto que lhes nega participação. Tal tendência é usada e exaltada pela mídia e pelo marketing que aproveitam para propor modelos de comportamento e de consumo, visuais, acessórios e estilos. Não somente para os adolescentes, mas também para os adultos, que começam a consumir produtos para jovens. Desde os anos 80 o marketing vem se especializando em adolescência: eles são numerosos e possuem mais dinheiro a cada ano e apresentar produtos voltados para adolescentes é incentivar o consumo adulto, que também sonha com a juventude.

A rebeldia característica da adolescência não é revolta pela exclusão do mundo adulto, mas cumprimento da vontade destes. O ideal cultural em nossa sociedade é a insubordinação, e a revolta torna-se a realização do sonho dos adultos. Estes se tornam com isso expectadores vendo seus desejos realizados nos adolescentes.

Com isso, tornam-se o próprio objeto de desejo dos adultos, ou seja, estes percebem o adolescente como a realização de seus sonhos: prazer sem responsabilidade, jovialidade. Os adultos se dão conta de que suas vidas vão acabando e que não se realizaram, mas o adolescente pode viver intensamente o que aqueles não devem mais por sua idade, e pelos compromissos sociais, de trabalho e da família. Por isso são os próprios adultos que empurram ao adolescente o signo da rebeldia e da irresponsabilidade. Torna-se assim o ideal cultural da sociedade.

Os adultos precisam tanto da adolescência como ideal para realizar-se, que Contardo Calligary afirma: “Se a adolescência não existisse, os adultos modernos a inventariam, tanto ela é necessária ao bom desempenho psíquico deles.”. (CALLIGARY, 2002, p. 60).

O fenômeno que se observa com isso, é que não só os adultos procuram vestir-se e comportar-se como adolescentes, mas vestem as crianças semelhantemente. O que se percebe é que a o comportamento adolescente típico tem ocorrido mais precocemente nas crianças e a maturidade tem atrasado. Os adolescentes não querem mais chegar rapidamente à idade adulta, mas preferem permanecer adolescentes. Há, até mesmo, casos de pessoas de 40 anos que não querem sair da casa dos pais, casar-se ou conduzir a sua vida à maturidade. Essa atitude é compreensível quando o adolescente se percebe como a realização dos sonhos dos adultos, quando todos querem ser como ele é, possuir o viço de sua juventude.

Naturalmente, não quererá amadurecer, pois isso exige capacidade de enfrentar a vida, as frustrações, o medo e a angústia que todo processo humano causa. Exige que o fracasso possa fazer parte da vida, que se tenha responsabilidade para assumir as próprias atitudes.

Essa tendência da adolescência como ideal é típica do americanismo: sociedade de consumo, individualista, hedonista. Talvez por isso Renato Russo tenha chamado sua geração de “geração Coca-Cola” em uma música homônima.

Ao recusar-se a morrer, os adultos da sociedade ocidental voltam-se para os adolescentes e fazem “curvar” a linha do tempo, ao contrário do oriente ou das sociedades que se relacionam pacificamente com a idéia da morte e da continuidade da vida.

É isso que Renato Russo canta na primeira frase do trecho citado no início do texto: o tempo passa continuamente e cada tempo desperdiçado é tempo perdido, mas para os jovens há “todo o tempo do mundo”.

Essa é mesma ideologia transmitida pelos anúncios publicitários voltados para os adolescentes, vinculando um produto ao ideal de liberdade, de curtição, de um tempo estático na juventude, ou seja, não é uma fase passageira da vida, mas a única fase em que se vive realmente a vida.

Não admira que nessa sociedade capitalista, os idosos sejam “enterrados” antes de morrer. Não se admite ao ancião os direitos por seu trabalho de anos a fio, sua experiência é desprezada como tudo que não é jovem, dinâmico, “moderno”. O idoso é tido como alguém que já está ultrapassado, perto da morte e não mais capaz de curtir a vida.

Vive-se sob a tirania da eterna juventude, as pessoas adultas querem aparentar menos idade do que têm, vestem-se como seus filhos, recorrem a cirurgias plásticas para apresentar o ideal de beleza imposto pela cultura ocidental: o que é jovem é belo.

É por isso que a Campanha da Fraternidade 2003 da CNBB alertou para a questão dos idosos. No texto base dessa campanha há uma afirmação que se repete ao longo do documento expressando a seguinte idéia: “Ninguém quer envelhecer, mas todos querem viver para sempre”. Afinal, como é que se quer viver mais sem envelhecer? Quer-se viver para sempre, mas como jovem, não como pessoa madura.

Por fim, resta-nos perguntar até quando a adolescência será o ideal cultural da sociedade, se esse movimento em torno da busca da eterna juventude e da estética dará ou não lugar a uma sociedade que também valorize a profundidade de vida, a experiência dos idosos e, que, realisticamente, encarará o problema da morte como constituinte da vida. Envelhecer é a tarefa dos adolescentes, mas enquanto esse processo for tratado como fim da linha e não como nova experiência, não chegaremos a uma sociedade que respeite o ancião e que se volte para valores duradouros, que realmente transformem o ser humano em seres melhores, ao contrário dos valores fugazes que se propõem por aí nos outdoors.

Até que chegue este dia, se a morte não nos chegar primeiro, corramos contra o tempo e cantemos com o poeta: “sempre em frente, não temos tempo a perder…”.


BIBLIOGRAFIA

CALLIGARY, Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2002. p.56-74.

CNBB. Texto-base da Campanha da Fraternidade 2003. São Paulo: Editora Salesiana, 2003.

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