05 março 2008

Quebrando as regras

Quando tratamos do ser humano, falamos de um animal capaz de se reinventar a cada dia. É justamente por essa flexibilidade potencial que temos necessidade de parâmetros, valores e regras. Nós nos perguntamos como viver melhor, como conviver bem com os outros, como devemos proceder em cada ocasião. Queremos definir o certo e o errado.

Isso, porém, não significa que queremos seguir as regras o tempo todo. Talvez a única norma universalmente válida para o ser humano seja a transgressão das normas.

Tal situação é afirmada no conto "A igreja do Diabo", de Machado de Assis. O texto conta da formação de uma religião do egoísmo, vícios e maldade. No entanto, para a surpresa do Diabo, os seus adeptos transgrediam as normas para fazer o bem vez por outra, às escondidas. Eram "tentadas" a comportar-se bem e sucumbiam a esses bons desejos.

O gênio criativo de Machado de Assis não deixou de expressar com realismo a mania de violar regras que os seres humanos têm. Isso não é uma acusação e nem uma apologia. É simplesmente uma constatação.

A transgressão não é contraditória com a necessidade de normas que o ser humano tem. Pelo contrário, é preciso que haja parâmetros de conduta para que haja sua violação. Nossas normas são os padrões nos quais nos espelhamos, mas são palavras fixas num papel, ao passo que nós somos constante mudança, eterno recriar-se.

É por isso que somos transgressores. Não é por maldade, mas por necessidade de nos superar, por desejos sempre insatisfeitos, sempre novos, como nós mesmos.

Resenha do Filme: Quem somos nós? (What the bleep do we know?)


O filme "Quem somos nós" faz uma aproximação entre física quântica e metafisica, pensando as possibilidades da realidade e as conseqüências das novas descobertas científicas para questões existenciais.

Chama-nos a atenção o fato de a fisica recente lançar questionamentos da ordem do real, reconhecendo a contingência e o grande papel das possibilidades. De fato, o estudo das partículas sub-atômicas aponta para o paradoxo espaço-temporal de um mesmo objeto estar em dois lugares ao mesmo tempo. Passando da ordem sub-atômica para uma realidade mais abrangente, perguntamo-nos o quanto há de contingente mesmo nas possibilidades da vida.

Outro fator relevante levantado pelo documentário é a importância do observador. Enquanto um átomo não é observado, ele é um feixe de possibilidades, mas quando há um observador, ele assume apenas uma forma. A realidade não é, portanto um dado puramente externo, como pensava a física clássica, mas uma construção do sujeito, como já apontavam os filósofos da mente.

Assim, questionamos também uma visão determinista ou fatalista da vida, e, com argumentos da própria ciência, aproximamo-nos do existencialismo que devolve ao homem a possibilidade de dar forma à sua vida através da sua liberdade ontológica. O ser humano, enquanto sujeito, é o grande ator e responsável pelo que ocorre a ele mesmo.

Do ponto de vista religioso, a constatação da constante interação entre tudo o que existe, seja no nível das partículas sub-atômicas, seja no nível da interligação dos eventos, pode dar uma certa sustentação à espiritualidade. No filme, essa religiosidade aproxima-se do zen-budismo e, às vezes, beira ao panteísmo. Mas o importante é demonstrar que a existência de Deus não precisa ser necessariamente um perigo para a razão, podendo até mesmo beneficiar essa visão globalizadora.

Além da física, o filme discute a neurociência e a biologia humana, mostrando como para o corpo, não há diferença entre um experiência real e um sonho ou fantasia. Ou ainda como podemos nos acostumar com a realidade tal qual a experimentamos uma primeira vez, dificultando novos níveis de compreensão e vivência. Uma nova experiência pode ser tão desconcertante que escapa aos sentidos imediatos.

As sensações, além disso, causam uma descarga de hormônios, enzimas, ligações neurais que são assimiladas pelo corpo/cérebro. Quanto mais nos expomos a algumas situações, mais nosso corpo se adapta a elas e nos tornam "viciados" nelas. O mesmo ocorre quando evitamos outras experiências, às quais nosso corpo toma-se menos apto. Daí a importância dos sentimentos: as palavras e o pensamento têm um poder real sobre os acontecimentos e sobre nós mesmos.

É um filme interessante não só pela curiosidade como pela interdisciplinaridade. Os especialistas podem considerá-to até um pouco superficial, mas ele atinge o objetivo: populariza a física quântica e a filosofia, faz refletir sobre nosso papel no mundo e ajuda­-nos a nos conhecermos melhor.