20 junho 2008

A temperança ontem e hoje



1.Uma aproximação do conceito de virtude
O discurso sobre virtudes na sociedade contemporânea parece desgastado e sem força de penetração. Muitas vezes na história entenderam-se as virtudes num sentido moral de dever, de atos pré-admitidos como bons em si, e cuja prática seria desejável em vista de uma retidão de caráter e uma santidade de vida.

Identificar as virtudes apenas com atos heróicos isolados parece reduzir o verdadeiro significado que elas podem ter para as mulheres e homens hodiernos.

Virtude é um termo latino (de virtus, vir) cuja semântica remonta ao homem, à força. Mas virtus é a tradução do grego areté. Na concepção clássica grega, areté corresponde a excelência e relaciona-se com a realização última do ser humano. Trata-se de alcançar a vida desejável, a vida boa (eudaimonia). Só pode ter uma vida boa o homem de excelência, virtuoso.

Não é o caso de praticar as virtudes, mas de ser virtuoso. Poderíamos falar até mesmo de um “círculo virtuoso”: só o homem virtuoso age com virtude, e o hábito da virtude torna o homem virtuoso. Areté é, portando uma disposição para o bem, que permite que o ser humano tenha condições de escolher o melhor e realiza-lo. Em termos aristotélicos, corresponderia ao intermédio entre a potência e o ato, entre o querer e o agir bem. O hábito constante da virtude predispõe o homem para desejar o melhor, inclina-o (potência) em direção ao bem maior para todos (e assim ao melhor pra si mesmo). E a disposição para o bem faz com que o homem aja (ato) com virtude.

A eudaimonia seria o fim último (telos) do agir humano. No mundo antigo a eudaimonia era indissociável da vida pública. Só era possível viver a vida boa dentro da polis, em sociedade. O homem virtuoso é que compõe a cidade virtuosa. Querer e agir no sentido do bem da cidade é querer e agir em prol da própria felicidade.

Nesse sentido, o discurso das virtudes permanece bem atual. Pois a identificação de felicidade com a mera realização das vontades individuais vem mostrando-se um falacioso discurso, que apesar de apregoado por todos os lados pela mídia, pelo relativismo moral e até mesmo por grupos religiosos contemporâneos, torna-se insustentável.

Além do mais, percebe-se que a virtude diz menos a respeito de ações pontuais do que ao ser humano em sua totalidade. Ser virtuoso é, dizendo de modo muito simples, humanizar-se, tornar-se humano, realizar-se. E aqui é preciso concordar com Aristóteles, para quem só pode possuir uma virtude aquele que possui a todas.

Em sua Ética a Nicômaco, o filósofo estagirita cita quatro virtudes que devem compor o cidadão, e que ficaram conhecidas desde a Idade Média como virtudes cardeais. São elas a Prudência, a Coragem, a Temperança e a Justiça. O conceito aristotélico de virtude é sempre o meio termo entre dois vícios, entre dois extremos. É a própria aplicação da justiça nos campos da razão (prudência), do instinto (coragem) e do desejo (temperança). Essa justa medida é que equilibra o ser humano, que o torna humano, e que o evita ser dominado por um aspecto limitador e desequilibrado de sua vida.

Nossa proposta é refletir sobre a virtude da temperança. O que devemos fazer sem perder de vista a unidade de todas as virtudes e a necessidade de atualização para que este trabalho não seja apenas um debruçar-se sobre concepções históricas ultrapassadas.

2. A temperança em Aristóteles

Segundo o autor de Ética a Nicômaco, a temperança é o meio termo entre a intemperança e a insensibilidade e refere-se aos prazeres e dores (mas predominantemente aos prazeres). Aristóteles reconhece que há pouquíssimos que podem ser deficientes no tocante aos prazeres, por isso não têm um nome específico. A esses o filósofo nomeou insensíveis. O excesso na busca dos prazeres corresponde à intemperança. Assim nos diz Aristóteles:

“Com relação aos prazeres e dores – não todos, e menos no que tange às dores – o meio termo é a temperança e o excesso é a intemperança. Pessoas com dificuldades no tocante aos prazeres não são muito encontradiças, e por este motivo não receberam nome; chamemo-los, porém, ‘insensíveis’”.[1]

A temperança e a intemperança dizem respeito, portanto, àqueles tipos de prazeres mais básicos e naturais não apenas no ser humano, mas em todos os animais, a saber, o tato e o paladar. A intemperança tende, dessa forma, a dominar o ser humano como animal. Nas palavras de Aristóteles,

“A temperança a intemperança relacionam-se com a espécie de prazeres que é compartilhada pelos outros animais, e que por esse motivo parecem inferiores e brutais; são eles os prazeres do tato e do paladar”.[2]

Enquanto o excesso do prazer parece reduzir o ser humano ao estado animal, a insensibilidade parece, ao discípulo de Platão, algo tão raro que faz do insensível algo diferente de um homem.

O temperante, ao contrário, é o meio termo entre o insensível e o intemperante. Não deseja o que não deve, não sofre mais do que deve pela falta desses objetos, e deseja moderadamente pelas coisas agradáveis, úteis e não contraditórias com o que é nobre.

Trata-se, evidentemente, do desejo moderado, equilibrado, justo. De não ser escravo dos desejos, de contentar-se com o que é suficiente e não sofrer por causa dos desejos insaciados.

Para Aristóteles, parece loucura sofrer por prazer. O intemperante acaba por sofrer duplamente: por não conseguir o que deseja e pelo anseio do próprio apetite imoderado:

“O intemperante, pois, almeja todas as coisas agradáveis ou as que mais o são, e é levado pelo seu apetite a escolhê-las a qualquer custo; por isso sofre não apenas quando não os consegue, mas também quando simplesmente anseia por elas (pois o apetite é doloroso). No entanto, parece absurdo sofrer por causa do prazer”.[3]

A temperança relaciona-se muito particularmente com um outro conceito grego muito caro e necessário para se levar uma vida boa: a autarkéia, ou auto-suficiência. Autarkéia é aquilo que torna a vida desejável e carente de nada. [4]

Parece-nos que essa independência, essa auto-suficiência, pode mediar a atualização da virtude da temperança para o homem e a mulher contemporânea. Esse anseio de liberdade que vivemos só pode ser real se os nossos desejos também forem livres. Vejamos agora o que um autor contemporâneo tem a dizer sobre temperança.

3. A temperança em André Comte-Sponville

Comte-Sponville é um filósofo francês e ateu confesso, o que permite ver sua leitura das virtudes de forma menos carregada de preceitos religiosos (apesar de conhecermos sua simpatia declarada pelo budismo). Por isso mesmo é uma visão interessante, mais conforme a mentalidade secular atual.

Em primeiro lugar, chama a atenção o fato de que o autor tenha escrito um “Pequeno tratado das grandes virtudes”. Além do mais, surpreende que a temperança esteja incluída no meio dessas “grandes virtudes”.

A temperança para Comte-Sponville não é a proibição do prazer. Mas refere-se justamente ao desfrute livre dos prazeres. Livre porque moderado. Mais uma vez remonta-se à autarkéia. A temperança permite que se desfrute melhor de tudo porque é um desfrutar livre, porque a moderação nos torna senhores e não escravos do prazer. Assim, além do desfrute do prazer, há também o desfrute da liberdade:

“A temperança é essa moderação pela qual permanecemos senhores de nossos prazeres, em vez de escravos. É o desfrutar livre, e que, por isso, desfruta melhor ainda, pois desfruta também sua própria liberdade”. [5]

André Comte-Sponville coloca todo o mérito da temperança nessa capacidade de fazer com que o temperante possa controlar seu desejo e não ser controlado por ele. Nesse sentido os exemplos levantados pelo autor são ilustrativos: poder fumar quando se pode parar, poder beber sem ser dependente do álcool, poder fazer amor sem se tornar escravo do desejo.

O que faz da temperança uma virtude é justamente o fato de que esse equilíbrio entre o desejo e a liberdade é difícil, possível para alguns e impossível para muitos.

Nessa relação entre temperança e autarkéia (traduzida no texto por independência), o filósofo francês cita Epicuro:

“Vemos a independência como um grande bem, não, em absoluto, para que vivamos de pouco, mas a fim de que, se não temos muito, nos contentemos com pouco, persuadidos de que os que menos necessitam da abundância a desfrutam com maior prazer, e de que tudo o que é natural é fácil de conseguir, mas o que é vão é difícil de obter”.[6]

Dessa forma, André Comte-Sponville concorda com Epicuro: as necessidades básicas (fome, sede e sexo) são mais fáceis de saciar. O problema se mostra na maneira como o intemperante é dominado pelo seu desejo: se não tem mais fome, provoca vômito para comer mais; se não quer mais sexo, procura a pornografia para atiçar o desejo novamente. É como se o intemperante precisasse sentir o desejo o tempo todo e sua satisfação fosse a tortura, quer sempre mais e nem o excesso o sacia.

Com razão, o filósofo francês lembra que a temperança não é a virtude mais excepcional. É uma virtude comum diante das demais, mas a dificuldade reside no objeto da mesma, que são os desejos mais necessários (comida, bebida e sexo) e, por isso, mais indomáveis.

4. Concluindo


Gostaríamos de trazer presente a música do grupo Titãs, intitulada “Comida” (Arnaldo Antunes/Sérgio Brito/Marcelo Fromer). Nela fala-se de “fome de” e “sede de”[7] numa distinção interessante entre desejo e necessidade. A necessidade é obviamente de comida e bebida, mas o desejo é direcionado para um prato específico e um “drink” daquela bebida determinada. Saciar as necessidades fisiológicas é tarefa simples. Contentar-se com a comida, a bebida e as relações que se têm é o que demanda temperança.

A intemperança nesses casos é geradora de dor, de angústia e insatisfação. Uma vez que, segundo Freud, as pulsões são uma fonte infinita, é preciso que haja um regulador do desejo para evitar a tragédia da sensação de eterna insatisfação, de eterna infelicidade. Quer chamemos esse regulador de temperança ou de independência frente aos desejos, o certo é que sem essa moderação o projeto antigo da eudaimonia fada-se ao fracasso. Por fim, convém ressaltar que a temperança é também uma virtude para os tempos modernos. Vivemos numa sociedade de consumo, carregada por excessos. Temperar esses excessos constitui uma tarefa necessária para o próprio bem da humanidade.

O exagero causa problemas ecológicos, como a devastação da natureza e a produção de grande quantidade de lixo. O capitalismo tenta fazer-nos acreditar que nossos desejos são verdadeiras necessidades. Tal ideologia gera consumo exagerado e o consumo gera mais problemas ecológicos e sociais. Além disso, a intemperança no alimentar-se causa obesidade ou anorexia. O excesso do consumo de bebida e fumo pode gerar dependência. Em relação aos prazeres sexuais o exagero pode fazer aparecerem fixações psíquicas.

Assim, não é de modo algum antiquado falar de temperança. Pois recomendar temperança é falar da própria liberdade frente aos desejos. Então essa virtude é necessária para aproveitar a vida com sabedoria e, por isso, aproveitar melhor, alcançando a realização final: ser humano plenamente.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco Poética. 4. São Paulo: Nova Cultural, 1987/1991. (Os Pensadores).

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Bauru: EDUSC, 2001.(Filosofia e política).

MAGNAVITA, Alexey Dodsworth. A felicidade além do princípio do prazer. Discutindo filosofia. São Paulo: Escala editorial, v.2, n.11, mar. 2008.


Notas:




[1] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco.p. 34
[2] Idem p. 56
[3] Idem p. 57
[4] Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. p. 15. Neste trecho é possível entender o conceito aristotélico de autarkéia: “(...)por ora definimos a auto-suficiência como sendo aquilo que, em si mesmo, torna a vida desejável e carente de nada. Não foram só os clássicos que buscaram essa auto-suficiência. A modernidade iluminista também procurou tratar da autarkéia no sentido de autonomia, esclarecimento (Aufklãrung), saída da menoridade, pensar por si mesmo. Para um maior aprofundamento, ver o conhecido texto de KANT. O que é esclarecimento?
[5] COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes viturdes. p. 46
[6] EPICURO citado por COMTE-SPONVILLE, André. op. cit. p. 46
[7] “Bebida é água, comida é pasto. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?”