17 setembro 2008

FRANCISCO: ÍCONE DE UMA ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICA

É difícil haver alguém que discorde da urgência da questão ecológica. No entanto, é igualmente difícil acreditar que o quadro atual do aquecimento global vai mudar somente com a divulgação de relatórios científicos e chamadas ecológicas nos intervalos comerciais de televisão. Muito mais necessário é o surgimento de uma verdadeira espiritualidade ecológica, entendendo-se por espiritualidade uma motivação que atinja a totalidade das dimensões humanas.
Neste sentido, um grande exemplo que o ocidente conheceu e que a própria Igreja pode propor como modelo de vida integrada por uma espiritualidade cósmica é a figura de São Francisco de Assis.

O irmão de Assis rejeitou um modelo religioso apartado das criaturas. Ao ser-lhe proposto uma das regras monásticas já consagradas (de Bento ou de Agostinho), Francisco insistiu que queria ser “um novo louco no mundo”. Ao contrário, viveu a alegria de estar entre homens, dos maiores aos menores, também animais, pedras, rios, plantas. Nada para ele poderia ser obstáculo para o encontro com o Altíssimo, mas recebia o caráter de sacramento: toda criatura tinha o rastro do Criador, tudo carrega a beleza e a bondade pelo simples fato de existir.

São Boaventura, na biografia que escreveu sobre São Francisco, fala sobre essa intuição: “Repleto também de piedade mais copiosa pela consideração da origem de todas as coisas, chamava as criaturas, por mais pequeninas que fossem, com os nomes de irmão e de irmã, pelo fato de que sabia que elas tinham com ele um único princípio”. (Legenda Maior VIII, 6).

Francisco, portanto, viveu um re-encantamento da natureza, capaz de intuir muito além de uma dominação utilitária. As criaturas têm uma dimensão sagrada por constituírem pegadas do Sumo Bem. Os bens naturais são irmãos e irmãs nossos.

O segredo de São Francisco não está somente em ser irmão, mas em acrescentar o adjetivo “menor” em sua fraternidade. Não quer ser um irmão mais velho, herdeiro e dominador. Quer ser um irmãozinho, irmão menor.
A confraternização de Francisco com todas as coisas passava pelos leprosos, pelos bispos e malfeitores, pelos esquecidos e pecadores, pelos príncipes e ladrões, como também pela natureza e cada criatura particularmente. Concretamente “ser menor” significa deixar que o outro seja. Amar todas as criaturas pelo que elas são em si mesmas.

Por isso os biógrafos de São Francisco podem relatar a proibição aos seus frades de cortar as árvores pela raiz, na esperança de brotarem novamente. Contam também que o santo mandava os hortelãos deixarem um canto para as ervas daninhas e que cultivassem um canteiro de flores e ervas aromáticas.

Outra característica da espiritualidade fraternal de Francisco está no modo de vida pobre. A virtude da pobreza é fundamental para a preservação do planeta: não se apropriar de nada, mas reconhecer o valor de cada criatura. Deixar que as coisas sejam, renunciando submeter os bens naturais aos interesses do lucro, da satisfação própria, da propriedade privada, da exploração, da injustiça, do pecado. Segundo Leonardo Boff,

A posse cria obstáculos à comunicação entre as pessoas e com a natureza, porque pela posse dizemos sempre ‘isto é meu’, ‘aquilo é teu’ e assim nos dividimos. Ela representa os inter-esses humanos, vale dizer, aquilo que se inter-põe entre as pessoas e a natureza. Quanto mais radical, mais a pobreza aproxima o ser humano da realidade nua e crua; mais lhe permite uma experiência global de comunhão sem distância, no respeito e na reverência da alteridade e da diferença. A fraternidade universal resulta desta prática de pobreza essencial. Não colocar obstáculos entre nós e todas as coisas (inter-esse).[1]

Poverello, amplia os horizontes do eu numa grande irmanação cósmica. O seu cântico do irmão sol, síntese de mística e poesia, foi composto quando Francisco estava cego, sofrendo fortes dores corporais, dois anos antes da sua morte. Nessa poesia, haverá um espaço para louvar a reconciliação que concretamente se realizou entre o prefeito e o bispo de Assis, e ainda para uma fraternidade radical, que reconhece a própria morte como irmã. É esse mesmo cântico que Francisco pede para os seus frades entoarem com ele no seu leito de morte:

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
teus são o louvor, a glória e a honra e toda bênção
Somente a ti, ó Altíssimo, eles convém,
e homem algum é digno de mencionar-te.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão sol,
o qual é dia, e por ele nos iluminas.
E ele é belo e radiante com grande esplendor,
de ti, Altíssimo, traz o significado.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas,
no céu as formaste claras preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento,
e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e todo tempo,
pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água
que é muito útil e humilde e preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo
pelo qual iluminas a noite
e ele é belo e agradável e robusto e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a mãe terra
que nos sustenta e governa
e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam pelo teu amor,
e suportam enfermidade e tribulação.
Bem-aventurados aqueles que as suportarem em paz
porque por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a morte corporal,
da qual nenhum homem vivente pode escapar.
Ai daqueles que morrerem em pecado mortal:
bem-aventurados os que ela encontrar na tua santíssima vontade,
porque a morte segunda não lhes fará mal.
Louvai e bendizei o meu Senhor
e rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade.


Portanto, em São Francisco, encontramos não só uma ecologia exterior, mas uma ecologia interior, que reconcilia e festeja o Criador e as criaturas, o masculino e o feminino, os seres humanos entre si e com a morte. Sem essa ecologia interior o planeta ameaçado vai continuar sendo apenas uma notícia alarmante, uma conseqüência daquilo que os outros fizeram e nunca um grito que nos afete. Sem afeto, envolvimento, não poderemos salvar nossa casa, a mãe terra.

E se o mesmo ocidente, que tanto destruiu e criou sistemas injustificáveis conseguiu gerar uma personalidade tão fraterna e universal como São Francisco, significa que não é impossível uma mudança de rumos, precedida por uma mudança paradigmática da dominação para a irmanação cósmica.


[1] BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres: Dignitas Terrae. São Paulo: Atica, 1995. p 327.
* A imagem reproduzida é um detalhe dos afrescos de Giotto na Basílica de Sao Francisco em Assis